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À sombra dos heróis esquecidos

Fui a Salvador com um objetivo específico: percorrer os rastros da Conjuração Baiana. Não era minha primeira visita à cidade, mas desta vez não fui em busca do mar, da música, do dendê. Fui atrás de um episódio que insiste em sobreviver à margem dos livros didáticos — um levante popular, negro, plebeu, brutalmente punido pelo crime de ousar sonhar com liberdade e igualdade num Brasil colonial ainda sob o jugo português.

A Conjuração Baiana, também chamada de Revolta dos Alfaiates, foi mais do que um sopro republicano. Em 1798, quatro homens — João de Deus, Lucas Dantas, Manuel Faustino e Luís Gonzaga — foram executados em praça pública por espalharem ideias consideradas subversivas: o fim da escravidão, salários justos, uma república livre. Diferente da Inconfidência Mineira, cujos protagonistas eram homens letrados e de posses, aqui a insubordinação veio das camadas mais baixas, das mãos calejadas, dos corpos negros.

Mas a cidade parece querer esquecer. A história, como as placas dos monumentos, está se apagando, desgastada pelo tempo e pela indiferença. As fachadas do casario antigo, belíssimas e feridas, parecem compartilhar o mesmo destino dos que ousaram levantar a voz contra a monarquia: esquecimento.

Procurei os bustos dos quatro inconfidentes e os encontrei — quase por acaso — numa praça vazia, à sombra do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que estava fechado no dia da minha visita. Bem em frente, o Real Gabinete de Leitura, igualmente trancado. Era como se a cidade tivesse se virado de costas para essa parte de si, deixando-a ao relento, esperando que o tempo completasse o serviço que a forca não conseguiu: apagar a lembrança.

Há algo de incômodo nesse apagamento. Vivemos sedentos por heróis — figuras elevadas que representem virtudes inabaláveis, que nos façam sentir orgulho e pertencimento. Mas, ironicamente, deixamos na penumbra justamente aqueles que viveram essas virtudes com intensidade e pagaram com a própria vida.

Lembrar é, também, um ato de escolha. E a quem escolhemos lembrar diz muito sobre quem somos. Os mártires da Conjuração Baiana não cabem nos moldes confortáveis dos heróis consagrados: eram negros, pobres, radicais em suas ideias. Mas talvez por isso mesmo sejam ainda mais necessários hoje — como memória viva, como farol para tempos de sombra, como lembrete de que a coragem e a justiça nem sempre vestem farda ou falam com voz de comando. Às vezes, elas vestem linho cru, bordam palavras em panfletos e sobem no cadafalso com os punhos cerrados.