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A memória é o que nos segura no mundo

O Brasil está envelhecendo. Pela primeira vez na história, seremos um país com mais avós do que netos. Isso muda tudo: saúde, cidades, afetos — e, principalmente, o modo como lidamos com a memória.

Porque envelhecer não é só contar os anos. É lembrar — e, aos poucos, esquecer. E talvez esteja aí uma das maiores contradições da nossa identidade: somos um país que está envelhecendo, mas que sempre teve pressa de esquecer.

Basta olhar para nossos monumentos. Tantas placas apagadas, praças abandonadas, bustos que já não têm mais nome nem flores. A história se desfaz como tinta sob o sol. A memória pública se apaga do mesmo jeito que as fotos desbotam nas paredes das casas dos nossos avós.

E o que acontece quando tudo desbota?

Há algo profundamente simbólico no jeito como lidamos com os nossos símbolos. Somos um país jovem, com uma capital ainda menina — Brasília, erguida do nada, como um milagre modernista cravado no cerrado. A cidade nasceu sem passado, com pressa de ser futuro. Um futuro que hoje também envelhece. As cúpulas que um dia pareciam naves espaciais agora têm infiltrações. As promessas da utopia estão no chão rachado das superquadras.

Damos nomes pesados a lugares que não acumularam história. Construímos mausoléus para heróis que ainda não conhecemos direito. Criamos símbolos antes de termos memória para sustentá-los.

Enquanto isso, os que têm história de sobra — nossos velhos, nossos avós, nossos ancestrais — muitas vezes são deixados à margem. Envelhecem em silêncio. E com eles, vai embora uma parte do que somos.

Porque é na memória que se guarda o sentido. E se a memória falha — como acontece nas doenças do esquecimento —, a pergunta assombra: se esquecemos quem somos, deixamos de ser?

Penso nos nossos avós. Nas fotos esmaecidas, tortas na parede. Em retratos de casamento que parecem pinturas, nos olhos cansados, nas histórias repetidas com orgulho. Ali, naquela moldura, mora um pedaço da nossa origem. Uma raiz, um traço, uma verdade.

E me pergunto: quando formos nós os que estiverem chegando perto dos cem, o que restará nas paredes? Se as fotos agora vivem na nuvem — dispersas, perdidas entre mil pastas — o que vai perder a cor com o tempo? O que vai desbotar quando o tempo for nosso?

As fotos digitais não amarelam, mas somem. Um clique errado, uma conta esquecida, um backup não feito... e ali se vai um pedaço da nossa história. Um pedaço do que nos tornava reais.

Cuidar da memória é cuidar do que somos. É dar valor à palavra contada, ao retrato pendurado, ao nome que ainda precisa ser lembrado.

Porque um dia, inevitavelmente, seremos nós a sermos lembrados — ou esquecidos.
E o que nos fará únicos talvez não seja o que deixamos para o mundo, mas o que conseguimos guardar dentro da gente até o fim.

Se somos aquilo que lembramos, então lembrar é resistir.
E resistir, hoje, é cuidar com ternura da memória dos outros.
É reencostar a foto torta na parede.
É reler uma carta antiga.
É ouvir de novo, com paciência, aquela mesma história — contada pela décima vez — como se fosse a primeira.

Porque talvez seja mesmo.
Para quem conta.
E para quem ama.