
A brutalidade da laranja
A primeira coisa que se nota é o peso. Não o peso simbólico, nostálgico — esse vem depois —, mas o peso literal da máquina. A velha Olympia Deluxe laranja, com sua estrutura metálica e ruído de ferro em atrito, não se deixa mover com a leveza dos nossos tempos. Ela exige uma mesa firme, um corpo presente, e uma intenção decidida. Carinhosamente apelidei essa relíquia de Laranja Mecânica — uma piada que teria feito as instrutoras da escola de datilografia em 1992 caírem da cadeira de tanto rir (ou pelo menos me lançarem um olhar cúmplice, acima dos óculos de grau).
A Laranja não perdoa. Cada letra precisa ser conquistada com o dedo inteiro — e às vezes com o braço. Não há autocorreção, não há linha torta que escape do papel sem deixar cicatriz. Ela imprime com brutalidade. Uma letra é um soco. Um parágrafo, uma luta vencida. Ao final de uma página, a sensação é quase física: algo foi deslocado no mundo. Algo foi fixado, irremediavelmente.
É estranho amar uma máquina tão incompatível com a vida moderna. Nela, não há distrações, notificações, abas abertas. Só o som de martelos batendo contra o rolo, o avanço da folha e o inevitável ding da margem. Há uma beleza nessa fricção — entre o gesto e o resultado, entre o pensamento e a forma — que nenhuma tela consegue imitar.
Talvez o fascínio venha daí. De sabermos que algo ali é absolutamente concreto. Que cada palavra escrita na Laranja tem corpo, peso, presença. Que o texto, mesmo mal escrito, é irrecusável. Que para apagar, é preciso reescrever. E que reescrever significa, literalmente, começar de novo.
Escrever nela é como conversar com o tempo. Um tempo mais lento, mais árduo, mas talvez mais sincero. Um tempo onde cada letra cobra o seu preço — e vale cada centavo.
Com o tempo, a Laranja passou a servir menos para textos e trabalhos e mais para memórias. É ela quem datilografa um cartão de aniversário, um bilhete carinhoso, uma palavra que precisa ficar. Cada tecla pressionada ali é um gesto de permanência. Em um mundo feito de zeros e uns — onde tudo pode ser apagado com um toque —, a Laranja é um lembrete rude e precioso de que algumas coisas são para sempre. Ou, pelo menos, deveriam ser.
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